Carros elétricos: o Brasil não pode ficar na contramão da história
O Brasil tem tomado, ao longo das últimas sete décadas, uma série de decisões erradas que impactam a mobilidade, a qualidade de vida e a sustentabilidade. Foi em 1961 que o então presidente Jânio Quadros, em um simples decreto, mandou arrancar parte da malha ferroviária brasileira, extinguindo, por exemplo, o trecho ferroviário de Conservatória (RJ) da Estrada de Ferro RMV (Rede Mineira de Viação), entre outros.
O governo de Jânio Quadros não foi o único a deixar de investir na expansão e no aprimoramento da malha ferroviária. Desde a implantação da indústria automobilística no Brasil, na década de 1950, as ferrovias têm sido negligenciadas em prol do transporte rodoviário, um equívoco histórico e recorrente em todos os governos das três esferas: federal, estadual e municipal.
É triste a constatação de que o Brasil é o único, entre os países de dimensões continentais, a ter desmantelado seu sistema ferroviário.
A falta de planejamento urbano inteligente também levou as principais cidades brasileiras a crescer exclusivamente pensando em veículos de combustíveis fósseis, como gasolina, diesel e até mesmo o etanol.
Em São Paulo, rios foram enterrados em galerias para dar lugar a ruas e avenidas. No caso dos maravilhosos Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, seus cursos foram retificados e as margens desastrosamente ocupadas. O objetivo era fazer da capital paulista uma metrópole estruturada no transporte rodoviário. Assim, até mesmo os investimentos anteriores em mobilidade sobre trilhos foram perdidos.
Poucos sabem que o Sistema de Bondes Elétricos da Light foi inaugurado em São Paulo em 7 de maio de 1900 e operou por 68 anos. O sistema se expandiu rapidamente. Em 1900 havia 107 km de trilhos e em 1916 saltou para 227 km de extensão, enquanto a população cresceu de 239.820 para 574.879 habitantes. Chegou à marca dos 300 km nos anos 1960, quando foi desativado – com a presença do governador e do prefeito da época.
Já o Metrô de São Paulo, que começou a ser construído em 1968, conta hoje com apenas 71,3 km de rede. Se somarmos essa extensão à quilometragem da CPTM - Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, teremos 331 km de transporte sobre trilhos em 2017 para atender uma população de 22 municípios, incluindo a Grande São Paulo. É claro que o sistema metroviário e de trens metropolitanos atual é muito mais eficaz e eficiente que os antigos e até mesmo românticos e charmosos bondes. Mas quando comparamos as atuais necessidades da cidade devido ao tamanho da sua população e das distâncias médias percorridas, verificamos que o transporte urbano sobre trilhos é hoje proporcionalmente muito menor do que foi na década de 1960.
Em São Paulo, a mobilidade ficou ainda mais agravada porque no curto espaço de quatro décadas bairros inteiros foram verticalizados e poucas alterações significativas foram feitas na malha viária e na redistribuição das ruas. A Vila Olímpia, por exemplo, bairro paulistano que reúne diversas empresas de alta tecnologia, está repleta de edifícios inteligentes em “ruas burras”. “Burras” porque são estreitas demais para o aumento do fluxo de pessoas e veículos. Desta forma, nenhum modal é contemplado devidamente. Não existem calçadas decentes em muitas dessas vias, corredores de ônibus, tampouco transporte sobre trilhos para contemplar as novas necessidades que o crescimento da população traz. O resultado é o caos, com grande aumento de poluição ambiental e sonora.
A solução da mobilidade urbana depende de ações coordenadas entre todos os setores da sociedade: planejamento, investimento em transporte sobre trilhos e também mudança de hábitos dos cidadãos.
Entretanto, a eletrificação da frota, ou seja, a migração dos veículos automotivos que utilizam combustíveis fósseis para veículos movidos a eletricidade, poderá contribuir para a mitigação de alguns dos principais problemas que o excesso de veículos tradicionais traz.
Isto porque veículos elétricos poluem localmente muito menos que os tradicionais, a combustão. São silenciosos e podem quebrar antigos paradigmas relacionados ao tamanho dos carros. Muitos dos novos modelos de veículos elétricos já estão sendo concebidos para serem compactos e dimensionados para uma ou duas pessoas. Ocupam muito menos espaço do que os “carrões” e SUVs e contribuem para a redução dos congestionamentos.
Uma nova geração de veículos elétricos tem sido produzida na Europa, como mostrou em setembro o Salão de Frankfurt, na Alemanha. Muitos deles buscam a eficiência energética, aumento da autonomia e em breve apresentarão índices de performance iguais ou até mesmo superiores que seus concorrentes movidos a combustão.
O veículo elétrico não é mais um futuro distante. É o presente. Agora, quando vários países da Europa declaram que vão banir os carros a combustão até 2040, e o Salão de Frankfurt mostra com orgulho as montadoras com seus carros elétricos, o Brasil novamente se posiciona na contramão da história.
Em Frankfurt, as montadoras Volkswagen, BMW, Mercedes-Benz e Renault anunciaram seus planos para a produção de modelos elétricos. Já aqui, alguns argumentos vão contra o carro elétrico. “Carro elétrico não faz sentido no Brasil nos próximos 30 anos. As distâncias são muito grandes", disse o presidente da Audi no país, Johannes Roscheck, em entrevista para o Auto Esporte. “O Brasil não pode olhar para a Europa e China e querer fazer a mesma coisa. Temos que olhar para o etanol, este tipo de combustível traz um benefício muito grande”, afirma Roscheck. “ “Provavelmente veremos um crescimento dos híbridos mais a curto prazo e os elétricos virão mais para frente, porque também carecem de um investimento mais a longo prazo”, avalia Antonio Megale, o presidente da associação das montadoras, Anfavea, em declaração para o mesmo veículo.
É claro que o etanol apresenta uma série de vantagens em relação aos combustíveis derivados do petróleo. Também é fato que simplesmente não podemos desperdiçar todo investimento e conhecimento tecnológico duramente alcançado com o etanol no Brasil.
Mas é certo que se deixarmos o trem da história passar, mais uma vez ficaremos na rabeira em termos econômicos e tecnológicos. Temos que aproveitar as nossas conquistas com etanol sem, contudo, deixar de enxergar que tanto a geração de energia limpa como o emprego da energia elétrica na mobilidade são necessidades e realidades iminentes para a mitigação dos impactos ambientais e da melhoria da qualidade de vida de todos.
O consumo de combustíveis fósseis, tanto para a produção de eletricidade quanto também para o transporte de cargas e pessoas, é a maior fonte de emissões de CO2 – dióxido de carbono – O CO2 é um dos principais gases causadores do efeito estufa, cujo aumento da sua concentração na atmosfera está contribuindo para as mudanças climáticas devido ao aquecimento global.
Segundo o Denatran, os carros elétricos no Brasil representam uma parcela ínfima da frota: são 5,5 mil unidades, ou apenas 0,005% dos 92 milhões de veículos que circulam no país. Já os 100% elétricos são contabilizados em apenas 10%, de acordo com a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE): nada menos do que 550 unidades. Na Noruega eles chegam a 28% do total.
Uma inovação nesse setor é o projeto Curitiba Eco-elétrico, que tem como finalidade incorporar veículos elétricos à frota do serviço público municipal. Inédito no Brasil, a primeira das quatro fases inclui a instalação de dez eletropostos e a utilização de dez carros e três micro-ônibus pela Guarda Municipal, Setran (Secretaria Municipal de Trânsito) e Instituto Curitiba de Turismo. A intenção é adotar, até 2020, soluções de compartilhamento de carros elétricos e bicicletas, com integração aos diversos serviços de transporte público. A iniciativa é uma parceria do município com a Itaipu Binacional, Renault-Nissan do Brasil e Ceiia (Centro para a Excelência e Inovação na Indústria do Automóvel), de Portugal.
Realmente, não podemos perder a oportunidade de investir em uma energia limpa e também na eletrificação da frota veicular. Não podemos fechar os olhos para essa tecnologia que desponta na aurora do amanhã e que em breve suplantará as tradicionais.
Enquanto o mundo aponta para novas tecnologias, vamos nos manter nas monoculturas e apenas vendendo commodities minerais?
Temos território, recursos hídricos, energéticos e biológicos invejáveis. Temos uma população ainda relativamente jovem, formada por diferentes culturas. O nosso potencial humano é muito grande. O Brasil pode sim continuar sendo um país muito forte no agronegócio e a na indústria extrativista. Porém, o seu passaporte para o futuro imediato necessita ser carimbado com investimentos em ciência e tecnologia de ponta e decisões assertivas para todos os setores produtivos.
Como os veículos elétricos já fazem parte do futuro e do presente, cabe então perguntar a quem interessa que não sejamos também protagonistas desta tecnologia? Certamente que ao país interessa, sim, desenvolver e promover a racional transição da frota automotiva de veículos a combustão para veículos elétricos.
* Sergio Luiz Pereira é engenheiro eletricista e professor livre-docente da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de SP. É co-autor dos livros “Ecoeconomia Tecnológica Cooperativa” e “O Gás Natural e Transição para uma Economia de Baixo Carbono”.