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Por Darlene Dalto

Meu Norte é o Sul



Um belo dia em 2015 a bióloga Juli Hirata resolveu mudar. De vida. Não sem motivos ela deixou tudo em São Paulo, onde morava e vivia bem e menos de um ano depois estava em Deadhorse, vilarejo com menos de 50 pessoas entre a baia Prudhoe e o oceano Ártico, o ponto mais ao norte possível por terra no Alasca, dando início ao projeto Extremos das Américas, que só vai terminar quando ela chegar ao Ushuaia, na Terra do Fogo, o ponto mais ao sul, na Argentina. Hoje, por conta da pandemia, Juli está na casa dos tios, em São Bernardo do Campo, as mochilas prontíssimas para voltar a Quito, capital do Equador, onde deixou equipamentos e sua bicicleta Borboletinha, uma Specialized Myka Pro azul comprada em 2009, há 11 anos, quando morou em Edimburgo, na Escócia. Vai continuar sua cicloexpedição de onde parou. Sua passagem está marcada para o dia 15, semana que vem. Ansiosíssima. Com toda razão.


Curiosamente a bicicleta nunca foi algo lúdico para ela. Sempre teve uma em casa, mas a usava esporadicamente para passear. Ela só passou a prestar atenção naquela bicicleta quando começou a fazer biologia no Mackenzie, em Higienópolis, dar aulas de ciências no bairro e estagiar na USP, endereços muito distantes um do outro. Nessa época a bike foi promovida e se tornou seu meio de transporte oficial. Assim tinha autonomia, conseguia economizar tempo e dinheiro. A verdade é que Juli se apaixonou por esse modal para sempre. Logo fez sua primeira cicloviagem, em 2001, o circuito Lagamar, coisa de 500 quilômetros entre o litoral sul e o Vale do Ribeira, em São Paulo. Apesar da enorme dificuldade, apesar de dezenas de perrengues, ela não parou mais e se tornou uma cicloviajante profissional. “A bicicleta é um catalisador de relações, as pessoas querem saber quem você é, de onde vem, para onde vai, o que já viu. É muito legal. Ao mesmo tempo você vive a paisagem. Dentro de um carro, a temperatura muda, você não sente. A gente vive cada centímetro. Eu fiquei completamente fascinada com tudo aquilo”, conta. Quando morou na Europa, continuou conhecendo um pedaço do mundo pedalando, Espanha, Itália, Turquia, Marrocos.


Mergulhando em um dos cenotes de água doce no sul do México


A decisão de mudar de vida aconteceu exatamente em julho de 2015, aos 35 anos. Após um processo de depressão, após se desligar dos quatro empregos que mantinha, após um divórcio, fez as mochilas e em abril do ano seguinte voou para o Alasca. Esse projeto, na verdade, já existia. Há algum tempo ela guardava um guardanapo em uma gaveta onde havia escrito: o que você faria na vida se não tivesse medo? Boa frase essa, não? Em seguida vinha uma lista de possibilidades, entre elas, viajar pelas Américas sozinha, conhecendo pessoas, povoados, parques, áreas naturais, costumes, culturas. Viajar sem pressa, sem se preocupar. Juli era casada, ganhava bem, tinha uma ótima vida social. Mas tudo aquilo não era o que ela queria de verdade. Começou a anotar lugares: Parque Denali, no Alasca, onde fica o monte McKinley, o ponto mais alto da América do Norte, Yellowstone, o primeiro parque nacional do mundo, entre os estados americanos do Wyoming, Montana e Idaho, Galápagos, o famoso arquipélago equatoriano localizado no oceano Pacífico, que inspirou Charles Darwin em sua teoria da evolução... Enquanto pesquisava não encontrou registros de mulheres que tivessem pedalado de um extremo ao outro do continente. Ela faria: Extremos das Américas. E como bióloga, conheceria o maior número possível de parques ao longo do percurso.

Placa em Wyoming


Menos de uma semana depois de chegar a Deadhorse, onde durante o dia sentiu 24 graus negativos e à noite, 32 negativos, muito muito frio dentro da sua barraca, ela pegou a Dalton Railroad em direção ao sul. “Um dos dias mais sensacionais, mais felizes da viagem. Ao mesmo tempo os 800 quilômetros mais difíceis que fiz principalmente por causa do isolamento e do frio intensos. Caí muito nos trechos de gelo que havia na estrada entre um e outro caminhão. O mais engraçado é que os motoristas já me conheciam. Eles se comunicavam e se avisavam sobre a minha presença naquele lugar no meio do nada”, lembra. Passou pelo Canadá, entrou nos Estados Unidos, depois México um pouco antes do Natal, Belize, Guatemala, Honduras. Nicarágua e Costa Rica.


Na chegada a Costa Rica



Em Wyoming, no Parque Nacional de Yellowstone, no Continental Divide


Banho de mar no norte do Panamá


Em Santa Marta, na Colômbia


No seu "escritório" em Maracas Beach, na ilha de Trinidad, no Caribe


Na Costa Rica, o maior perrengue de toda a viagem: sofreu um acidente seriíssimo quando pedalava na região do vulcão Irazu e teve um derrame no ombro direito. Mesmo assim continuou, chegou à Cidade do Panamá, conseguiu uma carona de avião para a Colômbia e acabou em São Paulo, na Clínica de Ortopedia Cohen, que lhe ofereceu um tratamento de graça. Uma benção. Recuperada, voltou à estrada em abril do ano passado. Recomeçou no Suriname, Guiana, Trinidad Tobago, Curaçao. Só não pode entrar na Guiana Francesa porque o país exigia um endereço fixo, que ela não tem. Depois Colômbia e Equador, de onde voltou para São Paulo para atender a vários convites para palestras. Deixou sua bike em Latacunda, ao sul de Quito, a capital, e veio. Deveria ficar por aqui pouco mais de uma semana, mas era início de março, pandemia...

Juli não poderia ter sido mais feliz desde que deixou o Alasca. Para conseguir dinheiro, trabalhou traduzindo textos para o inglês, português ou espanhol, cuidando de cachorros e também cavalos em Whitehorse, no Canadá, e em Montana, nos Estados Unidos, na recepção de um hotel em Bocas del Toro, no Panamá, foi guia de turismo em Guadalajara, no México, tradutora na Cidade Perdida, um sítio arqueológico na Colômbia, garçonete e chapeira em um restaurante em Tegucigalpa, em Honduras. “Aprendi a viver com pouco. Aprendi tudo sobre desapego. E não reclamava dos trabalhos que conseguia, ao contrário, senti um alívio gostoso por ter conseguido cada um deles”, explicou.


Uma pausa em Trinidad


Sim, ela também sentiu medo. “Medos de vários tipos. Ao longo de todo o caminho eu fiz camping selvagem, raramente ficava em hotéis ou casas, sempre dormia na barraca, então, escolhia bem o lugar, me escondia, escondia a bicicleta. Não tinha medo de bichos, mas de gente, de homens. Estava sempre tentando minimizar os riscos e a minha sensação de medo. Só duas vezes no Canadá me senti ameaçada. Uma, tive que lidar com um stalker e precisei fazer uma denúncia na polícia, outra, um homem me importunou em uma estrada, ele passou várias vezes por mim durante o dia com uma picape, um lugar isolado, e quando eu parei em uma área de descanso, ele também parou. Felizmente caiu uma tempestade, choveu a noite toda. Acho que ela me protegeu”.

Juli continua: “Mas eu costumo dizer que, para quem vive em cidades grandes, viajar sozinha não é muito diferente em relação aos riscos dos deslocamentos em geral, de carro, ônibus, bike. Ao mesmo tempo acabei desenvolvendo um olhar mais atento. A minha intuição ficou mais aguçada, parece que ela ganhou uma lente de aumento. Se algo me dizia para eu ir embora, eu simplesmente ia. Não questionava, ia embora. Passei a respeitar ainda mais o meu sexto sentido”.


Comemoração de 1 ano de projeto, na Guatemala

Em Prudhoe Bay, no Alasca


Mais do que amigos, ela ganhou famílias em cada um dos países por onde passou. “As pessoas são o melhor do caminho. Do Alasca até o Equador conheci gente muito especial, que me acolheu, que me fez sentir parte da sua família. Conheci várias associações de mulheres, grupos feministas maravilhosos. Fiquei doente, com febre alta em Guadalajara, no México, e as integrantes do Feminibici, um coletivo que promove o pedal entre mulheres, cuidaram de mim como se eu fosse uma irmã. Fiz conexões para a vida toda”.

E se a essa altura houver ao menos uma mulher pensando em fazer o mesmo que ela, uma viagem solo, e se aventurar na vida, Juli aconselha: “Eu recomendo. Costumo dizer que não viajo sozinha, viajo comigo mesma. A gente consegue fazer muito mais do que imagina. E ainda descobre que a nossa própria companhia é a melhor que existe. Já viajei com marido, com companheiro, com amigos e amigas, mas nada se compara ao prazer da solitude, nada se compara ao prazer de conseguir curtir um lugar maravilhoso você com você mesma. A sensação é deliciosa. A gente também aprende a se libertar da necessidade de estar sempre acompanhada e se torna livre para curtir lugares maravilhosos com pessoas ou sozinha. E descobre que não depende mais de ninguém para fazer o que quer. Eu recomento muito que todas as mulheres façam pelo menos uma viagem solo na vida, mais curta, longa, não importa”. Irresistível, não é?

E isso não é tudo. “Vá e viaje mesmo com medo de não saber o que fazer na hora que precisar resolver algum problema. Você vai resolver. A gente sempre consegue dar um jeito porque quanto mais difícil a situação, mais energia a gente coloca. E quando tudo estiver resolvido, vem uma sensação de poder, de orgulho, de autonomia. Tudo isso torna a gente mais forte, mais livre. Isso sem falar nas histórias, essas são sempre as melhores para contar na volta”.


A bagagem de Juli durante essa viagem incrível


Mais ainda: “Descobri que o amor próprio é revolucionário. A sociedade hoje em dia vive muito do ódio, do ódio que as mulheres têm em relação às nossas irmãs, às outras mulheres. E também do ódio em relação a nós mesmas e ao nosso corpo. Eu não tenho um corpo de atleta. Mas passei a achar o meu corpo maravilhoso porque foi ele que me levou a tantos lugares maravilhosos. Milhares de quilômetros em cima de uma bicicleta. E ele resistiu, se machucou, se recuperou e hoje ele está firme e forte. Meu corpo tem uma resiliência que eu não conhecia. Na viagem também construí uma mente resistente e um amor próprio que não tinha antes. Eu perdoava as outras pessoas, mas não me perdoava. Eu aceitava as falhas nas outras pessoas, mas não as minhas falhas. Hoje aceito mais as minhas falhas. Hoje sou mais carinhosa comigo mesma. Está tudo bem se eu cometer erros. Está tudo bem se eu não quiser fazer algo. Está tudo bem se eu não souber, não preciso saber tudo. Antes me culpava o tempo todo, agora estou mais tranquila em relação a tudo isso. Está tudo bem”.

Pausa.

Mas ela também recomenda precaução e conhecimento para minimizar perrengues. Por exemplo, ela conhece bem sua bike, sabe como funciona, sabe fazer pequenos consertos, trocar um pneu. “Se eu tiver que dar um conselho para uma mulher viajar solo é o seguinte: conheça minimamente o seu equipamento, saiba como sua bicicleta funciona e os problemas que ela pode ter. Porque mesmo que você não saiba consertar, pode ao menos dar um jeito até que a ajude chegue, até encontrar uma oficina. Isso faz com que você viaje sem medo de ficar na mão. Eu não sei consertar tudo, mas tenho uma boa noção. Várias vezes ajudei em mecânicas durante a viagem em troca de algumas horas usando as ferramentas que não tinha para fazer a manutenção ou algum conserto na bicicleta”.

Até agora foram 21 mil quilômetros de pedal. Do Alasca até a Argentina, em linha reta, são 24 mil quilômetros. Com os zigue-zagues que faz e vai continuar fazendo, não está nem na metade do caminho. Teve sorte, contou com uma companheira e tanto. Borboletinha praticamente não lhe deu problemas: o bagageiro quebrou uma vez, o câmbio também uma vez, pneus, apenas quatro furados. Resultado do cuidado que essa MTB recebeu, ela estava sempre limpa, redonda. Valente essa bike!

Impossível escolher o dia mais feliz, o país que mais gostou, a paisagem mais sensacional, os melhores momentos, é claro. Foram (e serão) muitos. “Não sei dizer. O primeiro dia da viagem, a primeira vez que vi um glaciar, a primeira vez que vi um urso polar, o almoço ao cruzar o ciclo polar Ártico. Aquele vento delicioso depois de 20 quilômetros de subida e a vista lá de cima, o Equador é repleto de lugares assim, a Colômbia também. A primeira vez que subi os Andes, depois de Bogotá, os desertos da Baja California, que são maravilhosos, o silêncio profundo que ouvi. Adorei o México, a Colômbia, o Equador, tantos lugares.”.


O tempo todo Juli dividiu essas experiências em praticamente todas as redes. Além de mil e uma histórias, tem quase dois teras em imagens. Mas ela mesma indica o seu insta @juli_hirata ou sua conta no pinterest para quem quiser ver um pouco do mundo que ela viu. Suas aventuras já conquistaram quase 500 mil pessoas. Para quem prefere ouvir podcasts, são vários dela contando a viagem dentro no portal extremos.com.br, o mais importante endereço digital de esportes de aventura do país. Por fim, Juli tem um livro já escrito com 50 crônicas, Cartas da Estrada, que deve ser publicado ano que vem.

E ela não pretende parar quando chegar à Terra do Fogo. “Não me imagino tendo uma casa, um trabalho formal novamente. Penso em continuar. Tenho vontade de conhecer a África, também imagino uma longa viagem de caiaque. Recebi um convite para pedalar no Japão, tenho muitos amigos por lá. Existem planos, mas nada definido. Eu tento ficar ao máximo no presente. O futuro me gera ansiedade, prefiro não ter nenhuma expectativa”.

Bons ventos a levem, Juli, e (sempre) a tragam de volta.

Vida de Bike é uma parceria do Pro Coletivo e Bike Anjo

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